Lições do rio Doce e a união que move o Direito
- gabinetedecrisecom
- 12 de jul. de 2019
- 5 min de leitura
Texto produzido pela Clínica de Direitos Humanos da UFMG

Quando nos pediram (e nos pedem recorrentemente) para escrever sobre as implicações “jurídicas” de empreendimentos minerários, os danos causados por eles e o que podemos fazer em busca da reparação, sempre nos deparamos com a conclusão de que o Direito, enquanto ciência jurídica, é bastante insuficiente para lidar com a complexidade desse tipo de conflito.
Apesar dessa fala aparentar desesperançosa, ela carrega em si o espírito da complementaridade e da necessidade de se somar esforços plurais com vistas ao enfrentamento dos desafios que nos são cotidianamente impostos pela atividade predatória da mineração.
Ou seja, só o Direito não basta para a construção de uma mineração justa, com as devidas contrapartidas à sociedade.
De maneira geral, sabemos quais são nossos direitos enquanto cidadãs e cidadãos, sendo aqueles mais fundamentais os relacionados, por exemplo, à vida, à integridade, à liberdade de manifestação, ao acesso à informação e à justiça.
O grande problema dos direitos humanos não se relaciona, portanto, com sua mera declaração, mas com a efetivação desses direitos, em especial no contexto da mineração, em que as partes envolvidas são tão desiguais.
No conto bíblico “Davi e Golias” este último é descrito como um guerreiro talentoso e bem treinado de 2,90 metros de altura, armado com lanças e espada, vestido com armadura, capacete e escudo de bronze até mais pesado que o próprio Davi.
Golias é capaz de ilustrar, metaforicamente, a força do poderio econômico na atualidade. Em busca de satisfazer sua sede incessante de lucro, as empresas desenvolveram e aperfeiçoaram formas de influenciar as estruturas políticas e sociais, o que as tornaram, como Golias, poderosos adversários. Seria ingênuo pensar que o setor privado, em especial as grandes corporações, não influi na elaboração de leis, na informação difundida pela grande mídia, na opinião pública e no dia a dia dos cidadãos.
Para se ter uma ideia, na atualidade, apenas 147 empresas controlam 40% da riqueza mundial [3] e, nesse contexto, elas se tornam até mais poderosas que os Estados Nacionais.
Estão beneficiadas pelas fronteiras fluídas do capital e, com isso, saem muitas vezes impunes das graves violações de direitos humanos que cometem nos locais onde atuam.
Os indivíduos, por outro lado, acabam por suportar injustamente os danos causados por esses Golias.
Por consequência, é esperado que o Direito seja capaz de conter essas injustiças e impor obrigações às empresas nessas situações. No entanto, estratégias de mobilização das comunidades atingidas têm contribuído para o fortalecimento da resistência, para a garantia de direitos e incidência no próprio conteúdo de Justiça.
Isso é o que nos mostra os depoimentos de duas atingidas pelo rompimento da barragem de Fundão, em Mariana/MG, em novembro de 2015.
Maria do Carmo e Shirley vivem em locais distintos e nem se conheciam até que a lama as uniu no enfrentamento das violações de direitos cometidas desde então.
Maria é produtora rural em Mariana/MG. Shirley é liderança espiritual em sua comunidade indígena Krenak, nas proximidades do município de Resplendor/MG. Ambas sofreram danos profundos e irreversíveis nas mais diversas esferas de suas vidas (social, econômica, ambiental, cultural…).
E, apesar disso não ser mais notícia recorrente nos jornais, esses danos continuam e se agravam conforme o tempo passa sem que as pessoas e o meio ambiente sejam devidamente reparados pelos responsáveis.
Nesse caso, como em tantos outros relacionados à temática da mineração, a empresa se valeu de diversos meios para enfraquecer a luta dos atingidos por seus direitos, conforme nos mostram as falas das atingidas.
Shirley Krenak
“Ao longo da história, o povo Krenak vem lutando contra a mineração. Há pelo menos 200 anos, a luta é constante, grande e desafiadora porque essas empresas vêm dominando o mundo de uma forma corrosiva, destruindo nosso meio ambiente.
E algumas das principais ferramentas que essas empresas têm se valido para ampliar sua dominação são: estudar as próprias comunidades que ficam ao redor de seus empreendimentos, o modo de vida que essas pessoas levam e a compra de lideranças.
Então, se uma comunidade tem lideranças que são respeitadas pelo resto do povo, as empresas vão, por exemplo, tentar corromper essas lideranças, oferecendo recursos para que essas lideranças trabalhem para a própria empresa.
E tentam isso 24 horas por dia. Comprando as lideranças, a comunidade fica mais desarticulada, não consegue mais falar a mesma língua. Por isso, para enfrentar essas empresas, a comunidade tem que estar muito unida e ser muito resiliente.
As pessoas precisam ser mais dispostas a lutar para viver bem. Se as pessoas não tiverem força de vontade de querer viver em um meio ambiente melhor, ninguém vai conseguir derrubar essas empresas. Somente quando as pessoas estiverem com a mente fortalecida e incorruptível é que obterão sucesso.
Dessa forma, ainda que as mineradoras trabalhem 24 horas por dia para destruir a união do povo, o povo também estará atento, pensando em estratégias de como impedir que essas empresas retirem seus direitos. Erehé inhauit!”
Maria do Carmo D’Ângelo
“Quanto mais a gente se envolve nessa luta, mais descobrimos que as mineradoras agem do mesmo jeito aqui ou fora do Brasil; estão apenas atrás do lucro e não têm sentimento algum. Elas usam os políticos a favor, usam a falta de transparência, a desinformação e a Justiça a favor… quem entra perdendo no Fórum somos nós, os mais fracos, pois, muitas vezes, não temos oportunidade de fala e temos que negociar com aqueles que mais nos causaram mal.
Estou nesse processo desde 2015 e tenho sofrido muito, eu e meu marido. As empresas criam nomes, classificações e categorias para medir a forma como a pessoa foi atingida, controlar o processo de reparação de danos e causar desunião nas comunidades. Vão corrompendo as pessoas, separando umas das outras…
O que a empresa deixa de considerar, nesses casos, é que na verdade as pessoas são todas atingidas. Aquele que teve a casa cheia de lama é considerado atingido diretamente, aquele que a lama “só” chegou até a porta, mas estragou tudo que tinha ao redor, é tido como atingido indiretamente, por exemplo.
Portanto, é a empresa que faz com que um atingido vire as costas para o outro. E, na verdade, são todos atingidos e têm que estar juntos na luta contra esses gigantes. Todos os direitos que foram reconhecidos até hoje foram fruto de luta e reivindicação dos atingidos aqui em Mariana. Por exemplo, aqui nossas terras de origem, destruídas pela lama, não serão “doadas” às empresas nem trocadas por indenização.
A terra é nossa, não estava à venda e não será comprada pela lama. Nossas histórias estão ali. Apenas com a organização e a pressão dos atingidos é que tivemos o reconhecimento disso na Justiça.
Propomos, então, uma união entre os atingidos por essas barragens espalhadas por Minas Gerais para que possamos enfrentar essas violações de direitos”.
As palavras de Maria e de Shirley apontam para a necessidade de união e articulação das comunidades atingidas. Somente quando a população se juntar, poderá resistir e fazer frente ao Golias da mineração. Isso porque um único Davi talvez seja um adversário fraco para Golias, porém vários Davis, quando se somam, podem vencer essa luta.
Autoras:
[1] Advogada e professora, Letícia é co-fundadora e orientadora da Clínica de Direitos Humanos da Universidade Federal de Minas Gerais.
[2] Sarah e Victória são alunas de graduação em Direito na UFMG e estagiárias da Clínica de Direitos Humanos da mesma universidade.
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