Análise: Lei Mar de Lama Nunca Mais deve servir como modelo para Política Nacional de Barragens
- gabinetedecrisecom
- 3 de ago. de 2020
- 8 min de leitura
MAB e International Rivers, Aecom e Ministério Público de Minas Gerais elaboraram notas técnicas e jurídica com sugestões a serem incorporadas ao PL 550/2019 (da Senadora Leila Barros/PSB-DF), que visa aprimorar a lei 12.334/2010. Veja aqui as considerações do Gabinete de Crise da Sociedade Civil, com base na lei 23.291/2019, de Minas Gerais, e na experiência recente com a insegurança de comunidades a jusante de barragens

Os avanços promovidos pela nova Política Estadual de Segurança de Barragens de Minas Gerais, conhecida como Lei Mar de Lama Nunca Mais, devem ser incorporados ao Projeto de Lei (PL) nº 550/2019, que visa aprimorar a Política Nacional de Segurança de Barragens (PNSB), estabelecida na lei 12.334/2010.
Fruto de projeto de lei de Iniciativa Popular, com assinatura de 56 mil cidadãos e de diversas organizações da sociedade civil, a Mar de Lama Nunca Mais foi formalmente apresentada à ALMG em 2016 e aprovada em 25 de fevereiro de 2019, um mês após o rompimento da barragem B1/Córrego do Feijão (Vale S.A.), em Brumadinho. A lei estabelece normas mais rígidas para o licenciamento e a fiscalização de barragens no estado e contou com a participação de integrantes do Gabinete de Crise da Sociedade Civil/Plataforma de Informação e Justiça Socioambiental (GCSC) na construção do texto pela Associação Mineira do Ministério Público, após o rompimento da barragem do Fundão (Samarco/Vale-BHP Billiton), em novembro de 2015 em Mariana.
As notas do MAB-International Rivers (18maio2020), da consultoria/auditoria Aecom (sem data/2020) e do Centro de Apoio Operacional do Meio Ambiente/Caoma-MPMG (28abril2020) apresentam contribuições e sugestões à proposta substitutiva da nova legislação nacional de barragens, com base no texto de autoria da senadora Leila Barros (PSB-DF). Após tramitar na Câmara dos Deputados, o texto sobre a PNSB foi remetido, em 20 de maio de 2020 (Of. 343/2020/SGM-P) pelo presidente da Camara dos Deputados Rodrigo Maia ao presidente do Senado Davi Alcolumbre, para aprovação final – o que, esperamos ocorra antes da próxima temporada de chuvas.
Após processo de Consulta Pública de que este GCSC e várias organizações civis brasileiras participaram, a versão atual do PL 550-A/2019 traz importantes avanços ao texto vigente da lei 12.334. Mas julgamos relevantes alguns pontos a merecerem a atenção do Senado, tendo em vista o substitutivo do PL e os subsídios trazidos pelas organizações acima citadas.
Sem adentrarmos nas minúcias do substitutivo e de cada avaliação, destacamos as importantes alterações trazidas aos artigos 4º, 6º e 7º, que tratam, respectivamente dos fundamentos, dos instrumentos do PNSB e da classificação, transparência e exigências de padrão mínimo de informações sobre barragens. Ressaltamos as melhorias trazidas pelos artigos 11 e 12, que especificam aspectos fundamentais dos Planos de Ação Emergencial (PAE) das barragens. Da mesma forma, o PL 550-A/2019 traz maior objetividade e clareza quanto às obrigações dos empreendedores (art. 17) responsáveis por barragens de acumulação de água, de resíduos industriais e de rejeitos da mineração, e às prerrogativas dos órgãos fiscalizadores, da Defesa Civil e do Sistema Nacional de Meio Ambiente. Importante avanço, na linha do que dispõe a lei Mar de Lama Nunca Mais, é contemplada pelos artigos 2º e 18, e nos novos artigos 18-A a 18-C, que tratam da proibição das barragens a montante, da descaracterização e recuperação de barragens de mineração e respectivas auditagens.
Nos concentraremos aqui a reforçar avanços do PL quanto às Zonas de Autossalvamento e à necessidade da descaracterização das bombas-relógio que colocam em risco comunidades rurais e urbanas de vários municípios ameaçados por barragens em Minas Gerais e no Brasil.
A lei 23.291/2019 e a Portaria DNPM 70.389/2017 definiram os conceitos de Zona de Autossalvamento (ZAS) e também de Salvamento Secundário (ZSS), incorporados ao PL 550. Entretanto, o PL falha em não estabelecer os atributos de espaço e tempo para chegada da lama, conforme definidos na lei 23.291 e na portaria do DNPM. Neste sentido, a nota jurídica do MPMG propõe a incorporação, ao inciso IX do artigo 2º do PL, dos atributos descritos na lei mineira e na versão original da portaria do DNPM, isto é, da Zona de Autossalvamento como “no mínimo, a maior distância entre os seguintes cenários: 10km ao longo do curso do vale ou porção do vale passível de ser atingida pela onda de inundação num prazo de trinta minutos”. E traz, em auxílio a esta definição, a emenda ao parágrafo 6º do artigo 12, com a consideração, enquanto ZAS, dos locais da ZSS, nos quais os órgãos de proteção e defesa civil não possam atuar tempestivamente em caso de vazamento ou rompimento da barragem. Com esta proposta a linha divisória entre as zonas de Autossalvamento e de Salvamento Secundário passa a ser regida, para além de critérios numéricos, pelo princípio da eficácia do salvamento assistido pelos órgãos de defesa civil. Ou seja, como diz o próprio nome, o autossalvamento ocorre por conta da ação exclusiva das pessoas atingidas ou ameaçadas pela eventualidade de catástrofes e desastres decorrentes da ruptura de barragens.
Do ponto de vista da responsabilidade solidária entre a lei, a sociedade, órgãos de controle e empresas ou instituições responsáveis por barragens esta objetividade é fundamental para que na indesejável mas provável ocorrência de novos desastres não restem zonas cinzentas quanto a obrigações, direitos e medidas eficientes para evitar danos, mortes, protelações legais quanto a responsabilidades e reparações e conflitos futuros.
De outra forma, imprescindível se faz dar um fim às barragens-bomba atuais, mediante a descaracterização delas, conforme definição no inciso XV do artigo 2º do substitutivo do PL 550, em sintonia com a definição da Lei 23.291, Mar de Lama Nunca Mais, e da versão original da Portaria 70.389 do DNPM. É importante registrar que a Resolução 13/2019 da Agência Nacional de Mineração (ANM) trouxe prejuízo a esta definição, ao estabelecer como “barragem de mineração descaracterizada” a estrutura que “deixa de possuir características ou de exercer função de barragem” (grifo nosso), ou seja, que possa ser uma barragem de rejeitos inativa ou desativada, conforme a definição constante do inciso IX do artigo 2º da Portaria DNPM 70389. Para se ter ideia, a barragem que rompeu em Brumadinho era uma barragem “inativa”.
A nota jurídica do MPMG é feliz em propor a substituição, no artigo 18 e 18-A do PL, dos verbos recuperar e desativar por recuperar e descaracterizar (conforme a definição da lei 23.291 e a proposta original da Portaria do DNPM), e do verbo descomissionar por descaracterizar, na modificação que o PL propõe ao parágrafo único do artigo 43 do Decreto-Lei 227/1967, que assim passará a ter um conceito tecnicamente atualizado à era dos desastres de mineração. Tais medidas reduzirão a margem de dubiedade de interpretação legal e judicial sobre aspectos técnicos e obrigações afins a barragens. Como ressalta a Aecom, “a não definição clara dos critérios que devem obrigatoriamente ser cumpridos para considerar a barragem descaracterizada, pode criar problemas e riscos maiores”.
Aecom e MPMG subsidiam o Congresso em detalhes sobre a descrição relativa a alteamento de barragens, lembrando por exemplo, que a mera proibição, tal como proposta para barragens alteadas a montante, pode dar margem a estratagemas para desvios a montante em barragens teoricamente alteadas por linha de centro – modalidade sem vedações na atual proposta.
Considera ainda, acertadamente, a necessidade de incluir novos alteamentos nas proibições relativas a barragens já existentes com moradores situados nas Zonas de Autossalvamento. Isso é fruto da experiência com situações concretas vividas por comunidades e o casuísmo das empresas, que fazem uso em causa própria de redações legais eventualmente dúbias nas normas relativas à segurança de barragens no Brasil e em Minas Gerais.
Registramos todavia nossa divergência sobre uma posição paradoxal do MPMG, ao ressaltar que: “há casos em que aparentemente não há viabilidade técnica para o desmonte total da estrutura. Por exemplo, existem barragens com mais de 100 milhões de metros cúbicos de rejeitos depositados, para as quais a desconstrução e retirada do material levaria muitos anos, gerando uma eternização do problema e transtornos imensuráveis às comunidades ao redor”.
Não conhecemos os estudos que servem de base a tais conclusões. Tampouco temos conhecimento das atas das reuniões de um grupo de trabalho citado pelo MPMG, cujas conclusões técnicas não estão esclarecidas na nota jurídica. Nenhuma consulta tem sido feita, por nenhuma organização de Estado, de forma democrática a comunidades locais e organizações socioambientais que vivem e têm denunciado o fantasma diário e potencial da lama de grandes barragens nas vidas de famílias, trabalhadores, escolas etc. A suposição sobre os transtornos imensuráveis, em detrimento de medidas corretivas eficazes, não pode ser concluída com base em reuniões de gabinete ou de colegiados de qualquer natureza sem a devida consulta e avaliação cuidadosa por quem habita os territórios e tem as grandes barragens sobre suas casas, locais de convívio e trabalho.
Neste sentido, não há como relativizar as ameaças das grandes barragens, ou estará o Congresso e o MPMG assumindo o risco da omissão face a futuros possíveis desastres de enormes proporções, como foi o caso da protelação da aprovação da lei Mar de Lama Nunca Mais, que, se aprovada no ano seguinte a sua apresentação, provavelmente teria evitado a catástrofe ocorrida em janeiro de 2019 em Brumadinho, apesar do legado de Mariana.
O PL 550-A em tramitação no Senado Federal, trouxe também elementos importantes para a consideração das comunidades nas tratativas dos procedimentos relacionados à segurança das barragens. O Movimento de Atingidos por Barragens (MAB) e a International Rivers ressaltam vários pontos positivos do PL, mas também apontam para a necessidade de se assegurar maior participação popular (por consulta prévia, livre e informada e o direito de veto) das comunidades sobre os procedimentos e licenças que coloquem em risco sua segurança e modos de vida. Por isso, também propõem a compatibilização da Lei 12.334/2010 com uma Política Nacional de Direitos dos Atingidos por Barragens (PNAB). Em parte, a participação ou consulta social é contemplada em sugestões do MPMG à redação do artigo 18-A, nos fundamentos do artigo 4º e no parágrafo 4º do artigo 11.
Contudo, entendemos que esta pauta precisa ser desenvolvida relativamente aos atingidos por barragens e também pela mineração, que tem afetado irreversivelmente vários territórios, inclusive em contexto de desastres. É o que temos assistindo nas localidades próximas às barragens de Gongo Soco, em Barão de Cocais, de Antônio Pereira, em Ouro Preto, nos municípios de Ouro Preto e Itabirito, a jusante das barragens Forquilhas, em Nova Lima, a jusante da mina Mar Azul – todas estas, áreas atingidas pela Vale – sem falar das comunidades afetadas pelos desastres já ocorridos. É também o caso das comunidades ameaçadas pelas barragens da CSN, em Congonhas, pela da Anglo American, em Conceição do Mato Dentro, ou da RPM Kiross, em Paracatu. Um código de ética do Poder Público para exercer autoridade em tais situações precisa ser desenhado do ponto de vista legal, sob risco da ingovernabilidade e crescentes conflitos em territórios em que a mineração ultrapassou a linha vermelha de qualquer resquício de suportabilidade e governabilidade socioambiental.
Como se pode notar no texto e análise acima relatados, o Gabinete de Crise da Sociedade Civil entende que nem toda a agenda tem como ser atendida na fase atual da tramitação de um Projeto de Lei que, esperamos, deve ser aprovado, no mínimo, com as conquistas e definições já incorporadas ao mesmo, sob pena de assistirmos a novo desastre enquanto se espera a ação dos homens e mulheres em função pública e capazes de transformar a realidade.
No nosso entendimento, as principais questões técnicas e o clamor social (consubstanciado em indignação e frustração de muita gente que espera mudanças efetivas) estão aqui delineados.
Esperamos a aceleração da aprovação do PL 550-A, com os aprimoramentos que se fizerem possíveis, mas sem o risco de adiarmos uma atitude cara ao país e aos que habitam territórios atingidos pela mineração.
Leia na íntegra o texto do PL 550-A/2019, que visa alterar a Lei 12.334-2010, que institui a Política Nacional de Segurança de Barragens (PSNB), com base na Lei Estadual 23.291/2019, conhecida como Mar de Lama Nunca Mais. Leia também na íntegra a nota jurídica do MPMG, a nota técnica da Aecom e a nota jurídica do MAB-International Rivers.
Faz parte de algum movimento ou organização da sociedade civil? Apoie a imediata aprovação do PL da Política Nacional de Segurança de Barragens pelo Senado Federal através deste link.
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